TRATAMENTO DA ENCEFALOPATIA HEPÁTICA
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Encefalopatia hepática (EH) é uma disfunção cerebral difusa causada por insuficiência hepática e/ou shunt porto-sistemico que se manifesta por amplo espectro de manifestações neurológicas ou psiquiátricas desde alterações subclinicas até coma . É uma complicação frequente na doença hepática crônica ocorrendo em 10-14% dos cirróticos em geral, 16-21% na cirrose descompensada e 10-50% em pacientes com shunt transjugular intra-hepático portossistêmico (TIPS) .
Encefalopatia mínima ocorre em 20-80% dos pacientes com cirrose. A EH tem um impacto significativo na qualidade de vida do paciente, na habilidade de conduzir veículos, e, recentemente, tem sido associado com o aumento de internações e morte. O risco de um 1º episódio de EH é de 5-25% nos primeiros 5 anos após o diagnóstico da cirrose, dependendo da presença de fatores de risco e, após o primeiro episódio o risco cumulativo é de 40% de recorrência em 1 ano. Após TIPS a incidência cumulativa em 1 ano é de 10-50% .
ABORDAGEM TERAPÊUTICA
Revisar e tratar causas precipitantes
Buscar ativamente fatores precipitantes por meio da anamnese, exame físico e exames complementares lembrando que no caso de EH persistente a não aderência medicamentosa pode por si só levar a EH.
O tratamento de EH tem por objetivo reduzir as complicações clínicas e corrigir os fatores precipitantes desta condição. Nesse sentido, a maioria dos tratamentos foi concebida com o intuito de reduzir os níveis de amônia circulantes na corrente sanguínea, além de ser recomendada para qualquer doença hepática, seja aguda ou crônica.
A encefalopatia hepática sempre tem um fator desencadeante — o tratamento só será eficaz se ele for corrigido.
Causas mais comuns:
Fator dietético
A restrição dietética não é muito aconselhada no estágio inicial da doença, entretanto na EH grau II a IV, recomenda-se reduzir a ingestão de proteínas além de aumentar a ingestão de fibras, que proporciona aumento do bolo fecal e redução da absorção de amônia no intestino. Manter dieta rica em energia (30–35 kcal/kg/dia).
Proteína: não restringir severamente; usar 1,2–1,5 g/kg/dia, preferindo proteína vegetal ou suplementos com aminoácidos de cadeia ramificada (BCAA) se intolerância à proteína animal.
Tratamento esquemático da EH:
O tratamento da EH clíncia deve ser realizado da seguinte forma :
Gerais:
- Manter a ingesta proteica (1,2g/kg/dia de proteína) e 35-40kcal/kg/dia
- revisar, retirar fatores precipitantes e tratar causa da descompensaçao
Específico Opção 1:
Tratamento inicial. Dissacarideo não absorvível: efeito prebiotico e laxativo
Lactulose 20 ml VO ou SNG de 6/6 horas (ajustar para 2 a 3 evacuações pastosas/dia), podendo chegar, em casos graves, a 150 ml ao dia.
Específico Opção 2:
Enema de lactulose (lactulose 300 ml mais 700 ml de água destilada por via retal até 3 vezes ao dia.
Específico Opção 3:
Antibióticos orais não absorvíveis: A recomendação é baseada na propriedade dos antibióticos suprimirem a flora intestinal e sua atividade metabólica. Decorrente disso, há diminuição da produção da amônia e de outras toxinas derivadas das bactérias.
Neomicina, rifaximina e metronidazol são os medicamentos recomendados para tratar essa condição.
Metronidazol: dose de 250 a 500 mg de 8/8 horas é uma opção em pacientes com lesão renal de base
Neomicina 500mg/cápsula Encefalopatia hepática: 4-12g/dia VO, divididas a cada 4-6 horas, geralmente dose de 1000mg de 6 em 6 h .
Rifaximina 550 mg 12/12h por via oral
- Lactulose Oral
A lactulose é um dissacarídeo sintético não absorvível, formado por galactose + frutose, usado tanto como laxante osmótico quanto como agente redutor da amônia intestinal. Ela não é digerida no intestino delgado e chega intacta ao cólon, onde sofre fermentação pelas bactérias — e é aí que começa seu efeito terapêutico.
- Mecanismos de ação na encefalopatia hepática
🔹 A. Reduz a absorção da amônia (NH₃) no intestino
No cólon, a lactulose é fermentada por bactérias → produz ácidos orgânicos (ácido láctico, acético e fórmico). Esses ácidos diminuem o pH colônico (tornam o meio mais ácido). O pH ácido converte a amônia (NH₃, forma lipossolúvel e tóxica) em íon amônio (NH₄⁺), que é hidrossolúvel e não atravessa a mucosa intestinal.
Resultado: menos amônia absorvida para o sangue.
🔹 B. Estimula o trânsito intestinal (efeito laxante)
A lactulose atrai água para o lúmen intestinal → aumenta o volume fecal → acelera o trânsito. Isso diminui o tempo de contato das proteínas e da amônia com a mucosa intestinal. Assim, a amônia é eliminada nas fezes, com o objetivo clínico de 2 a 3 evacuações amolecidas por dia (não diarreia intensa).
🔹 C. Modifica a flora intestinal
Favorece crescimento de bactérias acidofílicas (lactobacilos) e reduz bactérias produtoras de urease (como Proteus, Klebsiella, E. coli). Isso reduz a produção intestinal de amônia a partir da ureia e das proteínas.
🔹 D. Reduz a absorção de aminas neurotóxicas
Além da amônia, outras substâncias (mercaptanos, fenóis, ácidos graxos de cadeia curta) são tóxicas para o cérebro na cirrose. A lactulose diminui sua absorção intestinal, contribuindo para melhora neurológica.
Enema de lactulose
1️⃣ Indicações principais do enema de lactulose
✅ Quando fazer:
➡️ Objetivo: promover evacuação rápida e reduzir a absorção intestinal de amônia.
2️⃣ Como preparar o enema de lactulose
- Fórmula clássica hospitalar:
Lactulose (xarope) - 300 mL
Água morna (ou SF 0,9%) - 700 mL
Volume total 1.000 mL (1 litro)
Misturar bem até ficar homogêneo (pode usar seringa grande ou recipiente limpo de irrigação).
3️⃣ Como administrar o enema
Via: retal
Material: sonda retal nº 22–24 ou equipo de enema de borracha
🔹 Passos práticos:
Colocar o paciente em decúbito lateral esquerdo (posição de Sims)
→ favorece o trajeto do cólon descendente.
Lubrificar a sonda retal com gel hidrossolúvel.
Introduzir suavemente 10–15 cm no reto.
Instilar lentamente o enema (1 L) em cerca de 10–15 minutos, se possível.
Orientar o paciente (ou manter contenção gentil) para reter por 30–60 minutos.
Após isso, permitir evacuação no comadre ou banheiro.
💡 Se evacuação não ocorrer em 1–2h → repetir o enema a cada 4–6h até obter evacuação.
4️⃣ Frequência e duração
Pode ser feito a cada 4–6 horas nas primeiras 24 horas, até o paciente evacuar e melhorar o nível de consciência.
Depois, retornar à lactulose oral assim que o paciente puder ingerir líquidos com segurança.
OBSERVAÇÃO 👉Enemas glicerinado e fosfatado podem ser usados no tratamento da encefalopatia hepática (EH) ?
Enemas glicerinado e fosfatado podem ser usados em algumas situações para aliviar constipação, mas não são indicados para o tratamento da encefalopatia hepática (EH).
🚫 Por que NÃO usar fosfatado ou glicerinado em encefalopatia hepática?
🔹 A. Eles não reduzem amônia
Esses enemas somente evacuam mecanicamente, sem alterar o pH intestinal nem interferir no metabolismo da amônia — ou seja, tratam o sintoma (constipação), mas não a causa da encefalopatia.
🔹 B. Risco de distúrbios hidroeletrolíticos
O enema fosfatado contém fosfato de sódio, que pode causar:
Esses distúrbios agravam a encefalopatia e podem causar arritmias — especialmente em pacientes com doença hepática ou renal.
🔹 C. O glicerinado pode irritar a mucosa
Embora mais seguro que o fosfatado, o enema glicerinado causa irritação retal e cólicas, e tem efeito limitado em casos de constipação grave. Seu uso não modifica o metabolismo da amônia, portanto não trata a causa fisiopatológica da EH.
Tratamento antibiótico na encefalopatia hepática (EH)
1️⃣ Por que usar antibióticos na EH
A EH é causada principalmente pelo acúmulo de amônia e outros neurotóxicos no sangue. A flora intestinal produz amônia a partir de proteínas não digeridas e ureia. O uso de antibióticos não absorvíveis diminui essas bactérias produtoras de amônia, complementando o efeito da lactulose, com usso reduz a amônia e toxinas, melhora a confusão mental e prevenir recidivas.
Diminui bactéria produtora de amônia:
→ Rifaximina, neomicina ou metronidazol reduzem bactérias que convertem proteínas em amônia.
Reduz amônia intestinal e absorção:
→ Complementa lactulose, que converte NH₃ → NH₄⁺.
Previne recidivas:
→ Principalmente rifaximina em uso crônico para pacientes com episódios recorrentes.
2️⃣ Antibióticos usados
a) Rifaximina VO 550 mg de 12/12h - Primeiro escolha se disponível. Baixa absorção sistêmica → poucos efeitos colaterais. Reduz recorrência de EH.
b) Neomicina VO 1g de 6/6h (máx. 4 g/dia) por 5–7 dias. Alternativa à rifaximina se não disponível. Risco: nefrotoxicidade e ototoxicidade; usar curto prazo.
c) Metronidazol VO 250 mg de 8/8h por 5–10 dias. Alternativa se rifaximina indisponível. Risco: neurotoxicidade, neuropatia periférica se uso prolongado.
⚠️ Não usar aminoglicosídeos sistêmicos (exceto neomicina VO) — toxicidade elevada em cirróticos.
3️⃣ Duração do tratamento
EH aguda por 5–10 dias (dependendo do antibiótico)
Manutenção (recorrente, especialmente com lactulose falhando) recomendada Rifaximina: 550 mg 12/12h contínuo por meses, conforme tolerância
4️⃣ Cuidados e contraindicações
Neomicina: evitar se insuficiência renal ou risco de ototoxicidade.
Metronidazol: evitar prolongado (>10 dias) — risco de neuropatia e confusão.
Rifaximina: geralmente segura, mas caro e nem sempre disponível.
Em todos os casos: usar junto com lactulose, ajustar dose conforme evacuações e nível de consciência.
BCAA (aminoácido de cadeia ramificada):
É indicado como suplementação nutricional em pacientes intolerantes à ingestão de proteínas na dieta. Pode ser utilizado também como alternativa para tratar pacientes que não respondem à terapia convencional.
As diretrizes de Prática Clínica da Associação Americana para o Estudo de Doenças Hepáticas e da Associação Europeia para o Estudo do Fígado para EH na doença hepática crônica recomendam que, para episódios de EH evidente, a primeira escolha de tratamento e prevenção seja a utilização de dissacarídeos não absorvíveis e, a rifaximina como alternativa adicional. A utilização de aspartato de ornitina (LOLA) é recomendada em casos de pacientes não responsíveis à terapia convencional
Aspartato de ornitina é um medicamento à base dos aminoácidos L-ornitina-Laspartato (LOLA). Estas substâncias estimulam o ciclo da ureia no fígado, por meio do qual a amônia é metabolizada em ureia, e a síntese de glutamina no fígado, nos músculos e no cérebro.
Nome comercial: Hepa-Merz® .
Posologia e Forma de Administração: Aspartato de ornitina está disponível comercialmente nas apresentações granulado e injetável. Uso oral: 1 a 2 envelopes de 5 g ao dia. Dose máxima de 6 envelopes ao dia.
Uso intravenoso: Dose habitual para infusão de quatro ampolas diárias. Em ambas as apresentações, a depender do grau de gravidade da doença, a dose poderá ser alterada.
Profilaxia:
- Profilaxia primária: não é recomendada rotineiramente. O uso da lactulose profilático nos casos de HDA pode ser recomendado .
- Profilaxia secundária: após o 1º episódio é recomendada com lactulose (ajustar para 2 a 3 evacuações pastosas/dia), exceto nos casos em que o fator desencadeante foi identificado e retirado e o paciente apresenta boa reserva funcional hepática (avaliar caso-a-caso)
Se refratária: avaliar gravidade e prognóstico
Classificar com West Haven (grau 1–4) e Child-Pugh / MELD.
Internação em UTI se grau ≥ 3 (coma hepático, risco de aspiração).
Avaliar elegibilidade para transplante hepático se refratário ou recorrente.
Fontes
https://gastro.paginas.ufsc.br/files/2015/08/PROTOCOLO-ENCEFALOPATIA-HEPATICA-HU-Telma-e-Leo.pdf
https://www.hcrp.usp.br/revistaqualidade/uploads/Artigos/180/180.pdf
https://guiafarmaceutico.hsl.org.br/neomicina#:~:text=Encefalopatia%20hep%C3%A1tica%3A%204%2D12g%2F,a%20cada%204%2D6%20horas.&text=Preparo%20do%20TGI%20para%20cirurgia,9h%20antes%20do%20procedimento%20cir%C3%BArgico.&text=Encefalopatia%20hep%C3%A1tica%3A%200%2C625%2D1%2C,m2%20a%20cada%206%20horas.&text=Preparo%20do%20TGI%20para%20cirurgia%3A%2050%2D100mg%2Fkg%2F,a%20cada%206%2D8%20horas.
https://sbhepatologia.org.br/pdf/encefalopatia/d10.pdf